domingo, 22 de abril de 2012

Surpreenda-se

Surpreender: (super+lat prehendere)  vtdvint 6 Causar abalo, admiração, surpresa a; assombrar, espantar, maravilhar: Tais conseqüências não o surpreendem. O que nela surpreende é a expressão da voz. vpr 7 Admirar-se, espantar-se: Não se surpreende facilmente o filósofo. vtd8 Entrever, vislumbrar: "Uns querem surpreender nos corpos animados as origens remotas da vida" (Rui Barbosa). [Dicionário Michaelis]

"A visão consiste em surpreender o símbolo das coisas nas próprias coisas." [Clarisse Lispector]

Hoje são muitos os que não mais se surpreendem. Os olhos, que outrora translúcidos para a vida, hoje se fecham no banal. Não enxergando, andam cegos. E essa cegueira é adquirida, não natural. Natural é o surpreender-se, o espantar-se. Esse espanto que move o homem a descobrir, a escrever, a cantar e também, como necessário, sofrer. Perdemos a surpresa na vida cotidiana... Em miúdos, a vida se tornou chata.

A impressão que reina é que já vimos o que havia de ser visto. Já ouvimos tudo que precisávamos e os livros são bom encostos para móveis velhos. As pessoas são previsíveis, e monótonas (que curtos são os nossos horizontes!). A rotina sufoca e mata. E continuamos, fisiologicamente, vivos... E cegos. O sistema já se encarregou de nos engendrar em seu maquinário, e o que importa é fazermos nossa parte no processo. Não mais nem menos que isso. 

Será? E, só a pergunta já excita os apedrejadores a se levantaram: Desocupado leitor de Kafka, Freud e Pessoa...

Ora, alguns ainda enxergam. As crianças são um belo exemplo. Maravilham-se com o cachorro que vemos todas as manhãs e gostaríamos de enxotar. Com a água que rega as plantas, enquanto pensamos no desperdício daquilo. Com o quadro na parede... Espere, havia um quadro ali? As reações são imprevisíveis e o que se nota é uma gargalhada, um sorriso, um brilho no olhar que impressiona. Mas, crescemos. E, como imperativo, nos cegaram e nos cegamos. 

Mas, espere... Ainda posso apontar alguns exemplos.

Amélie Poulain, minha mais querida heroína francesa, começa sua jornada com a inquietude de um "tesouro" que fora escondido. Brinquedos de menino! Vai atrás do dono, e a porta vez após vez bate negativamente. Quem será o dono de tal tesouro? Enfim, uma cabine telefônica é o local do encontro e o homem, que acha o seu tesouro de menino, chora. Seu tesouro veio até ele! E, em lágrimas, relembra da passado e vê a oportunidade de reinventar o futuro. Há o espanto, a surpresa de algo de menino fazer chorar. 

Onde está nossa surpresa? Onde, os nossos verdadeiros olhos? Aqueles que conseguem desejar bom dia, que conseguem sorrir para uma manhã ensolarada ou para um dia frio, que pede um bom café? A visão desimpregnada de mesmice, mas também sem indiferença. Que admira o caminho que faz para o trabalho, que lê bons livros e tem as mais diversas reações enquanto viaja junto ao amigo escritor? A cegueira normativa em que vivemos tem cura... Podemos nos surpreender novamente.

As pequenas, as simples coisas. Os cheiros, os sons, as imagens. Não as perca. Elas estão dentro e ao redor de nós. Deixe de lado a indiferença, que faz dos noticiários trágicos de hoje mais um programa, ir embora. Indigne-se, sorria, chore, fuja e reencontre-se. Pior cego é o que sabe que pode ver, mas irredutível, permanece sem enxergar. Surpreenda-se com o amanhã... Com o agora! Seja as pulgas de Gaarder, que vão até o final do pêlo e gritam que há beleza do lado de fora.

"É pena. Será a minha tarefa impedir que tu, cara Sofia, te tornes uma daquelas pessoas para quem o mundo é evidente [...] um coelho branco é retirado de uma cartola vazia. Dado que é um coelho muito grande, este truque leva muitos bilhões de anos. Na extremidade dos pêlos finos nascem todas as crianças humanas. Por isso, podem surpreender-se com a inacreditável arte da magia. Mas à medida que envelhecem, deslizam cada vez mais para o fundo da pelagem do coelho. E permanecem ali. Lá em baixo estão tão confortáveis que nunca mais ousam subir novamente pelos pêlos finos. Só os filósofos se atrevem a fazer a perigosa viagem à procura das fronteiras extremas da linguagem e da existência. Alguns deles perdem-se pelo caminho, mas outros agarram-se bem ao pêlo do coelho e chamam os homens que, bem acomodados em baixo, na pele do coelho, comem e bebem tranquilamente. - Senhoras e senhores - gritam - estamos suspensos no espaço. Mas nenhum dos homens em baixo, na pele, se interessa pelo ruído que os filósofos fazem. -Meu Deus, que barulhentos! - dizem. E continuam a falar como até então: - Podes passar-me a manteiga? Como estão as ações hoje? Qual é o preço do tomate? Já sabes que Lady Di deve estar de novo grávida? [Jostein  Gaarder]


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