sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Senna, ou a Morte do Heroí (Ruben Alves)


Eu fiquei muito triste com a morte do Senna. Dizer que fiquei triste não diz muito, porque é preciso distinguir entre os vários tipos de tristeza, que não são iguais. Foi o tipo de tristeza que tive que me surpreendeu: era diferente, injustificavelmente diferente. E logo me pus a fazer cobranças: Por que é que eu não fico triste daquele jeito pelas crianças que morrem abandonadas, pelos inocentes que os criminosos matam, pelos doentes que agonizam torturados pela dor, pelos suicidas solitários? 

Minha tristeza pelo Senna me forçou a perguntar-me acerca dessa surpreendente geografia da sensibilidade da minha alma, que me parecia em conflito com a geografia das minhas sensibilidades morais. 

O que estava errado não era minha tristeza pelo Senna, mas minha pouca tristeza pelos outros que morrem. Lembrei-me de uma confissão de Bernardo Soares que me chocava todas as vezes que eu a lia: Há idas de poente que me doem mais que a morte de crianças. E agora era eu mesmo que fazia confissão parecida. Qual a razão da minha tristeza? 

Eu não estava triste por razões pessoais. Não tinha razão alguma para gostar dele. Não éramos amigos e nem mesmo conhecidos. Eu não tinha a menor idéia do que ele pensava. Se porventura nos encontrássemos, é claro que não falaríamos sobre corridas de Fórmula 1, de que não entendo nada. Teríamos sobre que conversar? Literatura, música, política, arte, jardinagem, culinária, religião? Será que as idas do poente lhe doíam mais que a morte de crianças? Será que ele tinha idéias de poente? Por vezes se fica mais triste quando não se conhece: porque eu nada sabia a seu respeito, então eu podia imaginá-lo do jeito do meu desejo. Nisso, então, minha tristeza se parecia com a tristeza das mocinhas apaixonadas que choravam porque tinham esperanças de se casar com ele. Elas não sabiam que não estavam apaixonadas por um ser real, mas por uma criação das suas fantasias. Há o verso de Vallejo: O seu cadáver estava cheio de mundos... Sim, o cadáver dele estava cheio de mundos, todos os mundos que minhas fantasias de herói eram capazes de criar. 

Tentei encontrar outra pessoa cuja morte tenha causado ou causaria tristeza semelhante. O Chico Mendes. Era homem honesto, lutador, pobre, dedicado à causa dos seringueiros abandonados na floresta, admirado. Foi assassinado. A morte dele foi triste. Mas somente uns poucos sentiram tristeza. 

Alguém mencionou a morte do presidente. Com o devido respeito, acho que o povo ficaria indiferente e frio se o atual morresse. O povo sentiu a morte do Tancredo porque ele, como o Senna, para citar Goethe, foi transformado de fato em alegoria. Era uma figura mítica. Nem o Ulysses provocou coisa que se parecesse. 

E o Betinho, se ele morrer. É meu amigo, gosto dele, todo mundo gosta e admira. Mas acho que a morte dele, como a do Chico Mendes, seria triste mas não provocaria tantas lágrimas. O Betinho é humano e conhecido demais para que seja pranteado como um deus. Para ser honesto, nem mesmo o papa... Duvido que o mundo chorasse tanto a sua morte quanto chorou a do Senna. Mesmo porque, morto um papa, já tem outro à espera, e os papas são todos iguais posto que são vigários de Cristo. Morto o Senna, não há outro à espera. A morte de um herói deixa sempre um lugar vazio. É esse lugar que causa a tristeza. 

O que é chorado é uma cena luminosa, dentro de nós, que repentinamente se apagou. Choramos um sonho. Senna era uma figura mitológica, saída dos livros que narram a saga dos heróis. Os heróis cavalgavam cavalos brancos, usavam elmos de ferro, e tinham espadas nas mãos. Eram sempre solitários, belos e puros. Iam sozinhos ao encontro dos dragões da maldade. Os homens que ficam, os invejavam. As mulheres os amavam. 

Mas as sagas dos heróis só são comoventes porque elas são a estória da nossa própria alma. Todos nós desejaríamos ser daquele jeito, heróis solitários... Ele usava elmo branco, viseira de cristal, cavalgava um bólido de aço, tinha a velocidade do raio, e assim partia para lutar contra um dragão invisível. 

Era certo que o dragão era invisível. Cada herói está na liça – e o seu desafiante é a Morte. Enganam-se os que pensam que Senna competia contra os outros. Os  outros também desejavam ser heróis, todos saíam juntos, em procissão, como se numa liturgia, a desafiar a Morte. Como o toureiro solitário, frente a frente com o touro, cada vez mais perto, desafiando-o ao golpe fatal. Para isso os carros devem ser cada vez mais velozes: para que se sinta cada vez mais próximo o calafrio da Morte. Cada carro de Fórmula 1 é um altar possível onde um herói será sacrificado em homenagem a um deus. A velocidade é o punhal sacrificial.

Assim era o Ayrton: parecia não ter medo, parecia rir-se dela, e saía sempre vitorioso, com aquela cara de menino. Ele parecia não levar a sério que os heróis não são deuses: são de carne e osso, como todos os demais. E a Morte não tem pressa: ela dá sempre o último golpe. 

Por isso ficamos tristes. A morte do Ayrton foi uma bela saga de herói que terminou... Lembro-me do enterro de Kennedy. O silêncio era total. Só os tambores rufavam. A frente do cortejo, um cavalo negro, luzidio, de passos nervosos e guarnições brilhantes. Mas nenhum cavaleiro o cavalgava. No entanto, havia, nos estribos, os sinais da sua ausência: duas botas vazias... 

No nosso mundo não existe mais lugar para os heróis solitários. As máquinas, as instituições, as organizações, os partidos – tudo é grande demais. Ali os indivíduos desaparecem. Ficam sem rosto. São substituíveis. Mesmo os heróis do futebol: se jogam mal, ficam de fora... O herói é o símbolo do nosso eterno desejo de sermos belos, puros e valentes. Que todos nos vejam! Que os homens nos admirem! Que as mulheres nos amem! Morto o herói, apaga-se o sonho e mergulhamos de novo no anonimato da multidão... 

(Ruben Alves)

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