segunda-feira, 26 de março de 2012

Cotidiano

Hoje acordei ouvindo um dos mais recentes álbuns de Chico Buarque, "Chico", e uma das músicas muito me chamou a atenção. Há músicas que tem essa propriedade única de seduzir seus ouvintes em uma situação típica, sem nenhum sinal de algo diferente.Talvez o título da postagem possa enganar, mas não me refiro a música de Chico com esse nome; A música a que me refiro se chama "Querido Diário".

Enquanto ouvia a música, a palavra cotidiano saltou a minha frente. Tomou forma e não me deixou quieto. Ainda que estudando, lendo outros textos, ela saltava a fazia algazarra na minha frente. A música, composta de  cinco estrofes, tem em cada primeiro verso uma palavra que se repete: Hoje. E afinal, hoje é uma palavra que me leva a cotidiano. As mesmas coisas de cada semana que trazem a sensação de massacre, de um ciclo sem fim.


Cotidiano, quando torna-se familiar, vira daninho. Mata e destrói o dia que acontece, o Hoje. Lembro de Otto Lara Resende, querido escritor São Joanense, em um texto chamado Vista Cansada, onde ele escreve: "O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.". O hábito tira a vista, e o hoje se torna ontem, numa eterna digressão que sufoca.

Nos cincos versos que Chico nos dá de presente, há situações tão corriqueiras... Encontrar com conhecidos que dão bom dia e sentem pena de um solitário. Depois uma cidade que acorda em contramão, onde o barulho faz presença e um cão é encontrado. Se questiona sobre a religião e sobre amar uma "mulher sem orifício". Fala do amor e também do inimigo que espreita. Trabalhando com o cotidiano, Chico mostra que a muito a se ver, muito a se tocar, muito a se sentir... Porém, como diz Otto, não vemos.

É impossível fugir ao cotidiano, ao dia a dia. A segunda de trabalho, de escola ou de faxina. Porém, precisamos de "orifício". Tem gente que achou esse verso horrível, porém não acho. Quantos vivem sem ter "orifício"? Sem ter por onde escapar suas lágrimas, frustrações, dores, alegrias, pesares, temores e sonhos. São herméticos. O surpreender-se é um tipo de "orifício" para essa vida esmagado pelo porrete do inimigo. Otto diz que crianças são assim, e que poetas também deveriam. Acho que todo mundo deveria ser assim...

E o cão que arranca, de hora em hora, um pedaço? Tem gente que volta para casa e ainda se mantêm na rua. E de hora em hora, o "cão" que trouxe da rua lhe arranca um pedaço. Um pouco de tranquilidade, de quietude, de conversa, de leitura... Mas lá está o "cão" que prontamente arranca um pedaço, um pouco disso que não tem na "rua" e que ele tira na "casa".

Acho, dos cinco versos, o quinto o mais interessante. Por que o inimigo não o quebra? Por que ele é macio. Assim é o cotidiano, ele vem e quer quebrar a qualquer um. Mas... Aos macios ele não quebra. Aos que tem os olhos limpos e querem ser surpresos como crianças, que veem no que achamos o obvio, o surpreendente... Que cada detalhar vale a pena ser demorado, mesmo nessas vidas que andam na contramão. 

Chico, mais uma vez, canta a vida. Afinal, essa é sua matéria prima: cantar o que a vida poetiza. 




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