terça-feira, 13 de março de 2012

Cicatrizes

"(...)Dentro, apenas visível, havia um menino, que dormia a sono solto. Sob uma mecha de cabelos muito negros caída sobre a testa eles viram um corte curioso, tinha a forma de um raio. 
— Foi aí que? — sussurrou a professora. 
— Foi — confirmou Dumbledore.— Ficará com a cicatriz para sempre. 
— Será que você não poderia dar um jeito, Dumbledore? 
— Mesmo que pudesse, eu não o faria. As cicatrizes podem vir a ser úteis(...)"

     As cicatrizes não são adornos que a maioria gosta de ostentar. No mundo de alterações e pessoas plásticas, um bisturi, laser e uma quantia de dinheiro resolvem (ou prometem resolver) as maiores cicatrizes estéticas que se possa ter. Ainda não inventaram, porém, plásticas para cicatrizes que marcam por dentro...
     Acontecendo de fora para dentro, uma cicatriz permite que a dor nos adentre e nos mostre que somos tão frágeis quanto não achamos que não somos. Ela fora uma machucado, uma corte que sangrara. Mas o que é sagrar, se não deixar que aquilo que te dá vida escorra, com  a possibilidade de perder tudo o que tem? Mas, se há cicatriz, houve estacamento. Não há mais perca, e o que se perdeu não volta. Porém, a lembrança do perder está ali. E ela pode incomodar. 
     Uma cicatriz hoje foi um machucado ontem... Então, cada cicatriz carrega em si dor. Uma afirmação tão categórica é perigosa, e logo irei desfaza-la. Mas, pensar nisso é fundamental. Se não há corte, escoriação, não há cicatriz.  Quantas cicatrizes temos, e muitas contra a nossa vontade? Pessoas, ou nós mesmos, que nós cortamos, queimamos, arranhamos, sangramos e sofremos. Elas são memórias as quais não gostaríamos de ter. 
   Mas, uma cicatriz é um memorial. E usando esse termo de maneira substantiva, não adjetiva, você pode pensar além do machucado, além da dor. Ela não vai sumir, mas ela vai te ensinar. Errar o alvo é descobrir uma maneira de não fazer... Se machucar é lembrar que se é frágil e finito, mas também é lembrar que há uma resistência que marcou aquele lugar como uma vitória. Sofrer não é bom, mas também não ruim. Somos tão unilaterais a ponto de não notar cicatrizes podem ser úteis?
     Você não é o primeiro a se machucar, e pode ser que muitas sejam as cicatrizes. Mas, ela também te lembra de que muitos outros como você também se machucam. E lembrar das suas cicatrizes te faz capaz de ir ao outro que está cicatrizando, ou mesmo ainda sangrando.  Isso acaba remetendo ao mito de Quíron, o centauro que era Imortal, conhecedor de todo tipo  de cura, porém um eterno ferido. De maneira mais ampla:
   Segundo o mito, Quíron é filho de Saturno (Cronos) e da ninfa Filira. O deus, para se esconder da esposa Réia, se metamorfoseou em cavalo para se encontrar com Filira: dessa união nasceu o centauro, metade cavalo e metade homem. Quando a mãe viu a criatura horrorosa que havia posto no mundo, pediu aos deuses que a transformassem numa coisa diferente: seu pedido foi atendido, e ela foi transformada numa árvore chamada Tília.
   Quíron ficou abandonado: o pai fugiu e a mãe não quis saber dele. Imortal, por ser filho de Saturno, Quíron sobreviveu, sendo encontrado por Apolo (deus do Sol dos gregos). Como pai adotivo, Apolo lhe ensinou todos os seus conhecimentos: artes, música, poesia, ética, filosofia, artes divinatórias e profecias, terapias curativas e ciência.
   Adulto, tornou-se ele um grande sábio, profeta, médico e mestre, transmitindo seus conhecimentos a todos que  desejassem aprender. Os heróis gregos (Hércules, Asclépio, Aquiles, Jason etc.) foram pupilos de Quíron, assim como os filhos dos reis da Grécia. Ele era o ‘centauro chefe’ e o preceptor máximo, tanto das artes da sobrevivência, como da cultura, da filosofia, e passou a orientar e burilar o intelecto dos discípulos, ficando conhecido também por preparar os futuros heróis. Quíron era ainda expert no uso da medicina de ervas e plantas e em Astrologia. Ele tinha o poder de cura nas mãos, e o que não conseguia curar, ninguém mais conseguia.
   Mas um dia, durante a festa de casamento de um filho de um rei, os centauros convidados se embriagaram e começaram a perseguir as mulheres, inclusive a noiva. Travou-se uma batalha entre os centauros bêbados e os convidados, entre os quais estava Hércules, que, acidentalmente, feriu Quíron, também presente à festa, com uma flecha, ou na coxa, ou na perna, ou no pé (há várias versões) ou seja, na parte animal do corpo. A flecha de Hércules, que havia sido banhada no sangue da Hidra (e sendo portanto venenosa), causou em Quíron uma ferida incurável; impotente para curar seu ferimento e não podendo morrer por ser imortal, ele começou a sofrer intensamente, recolhendo-se a uma gruta no monte Pélion onde, porém, continuou transmitindo seus conhecimentos aos discípulos.
   Por outro lado, Prometeu havia roubado o fogo dos deuses e dado para os homens, tendo sido, por isso, castigado por Zeus, que expressou que só o libertaria se um imortal abrisse mão de sua imortalidade e fosse para o Hades (reino subterrâneo, inferno) em seu lugar. Com pena de Prometeu e de Quíron, Hércules propôs a Zeus que soltasse Prometeu, pois Quíron faria isso: Zeus concordou, liberando Quíron de seu sofrimento, para morrer tranquilamente. O deus o homenageou, colocando-o no céu como a constelação de Sagitário (sagitta: flecha).

   Como o personagem Alvo Dumbledore cita, as cicatrizes podem ser uteis. O psicólogo Carl Gustav Jung sintetiza bem isso em uma frase, no artigo "O Arquétipo do Médico Ferido", de Jess Groesbeck:
 "É a sua própria ferida que dá a medida da sua capacidade de curar."
     

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